Como o acordo de cooperação técnica 133/2024 do Conselho Nacional de Justiça pode impactar positivamente a insolvência?

4 de outubro de 2024

Júlia Flores Schütt Promotora de Justiça no Ministério Público do Rio Grande do Sul

Lívia Gavioli Machado Advogada e Administradora Judicial

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“STJ nega liminar que buscava a remessa ao juízo falimentar dos bens de empresa do ‘Faraó dos Bitcoins’. A ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Nancy Andrighi indeferiu pedido de liminar para que fossem sustados imediatamente todos os atos de administração e disposição dos bens da massa falida da empresa GAS Consultoria e Tecnologia Ltda., apreendidos pelo juízo federal
criminal, e para que tais bens fossem remetidos ao juízo falimentar”.

Segundo a ministra, não se verificam no caso a plausibilidade jurídica do pedido nem o risco de dano irreversível ou de difícil reparação, o que torna inviável o deferimento do pedido formulado.

Em processo de falência, a GAS Consultoria pertence ao garçom e ex-pastor Glaidson Acácio dos Santos, o “Faraó dos Bitcoins”. Preso em 2021, em decorrência da Operação Kriptos da Polícia Federal (PF), Glaidson é acusado de liderar organização criminosa responsável por milionário esquema de pirâmide financeira iniciado em Cabo Frio (RJ). A investigação policial aponta que o grupo de Glaidson teria movimentado pelo menos R$38 bilhões no esquema ilegal de investimentos em criptomoedas.

Ao STJ, a massa falida alegou haver conflito de competência entre o juízo cível onde tramita o processo de falência da empresa, o qual tenta arrecadar os bens necessários à satisfação dos créditos concursais, e o juízo criminal que decretou a busca e apreensão dos bens dos investigados na Operação Kriptos. Sustenta que o juízo competente para decidir sobre a destinação dos ativos que compõem a massa falida da empresa seria o falimentar.

Uma “imagem” vale mais que mil palavras – O presente artigo não irá se debruçar sobre a notícia acima veiculada, mas visará, diante da elucidação de apenas um – de tantos que já tramitam e que cada vez mais irão vir à tona para enfrentamento pelo Poder Judiciário – caso concreto, demonstrar a relevância do Acordo de Cooperação Técnica no 133/2024 do CNJ para os processos de insolvência.

Nos últimos anos, a ascensão dos criptoativos trouxe desafios significativos para o sistema financeiro e jurídico – não afetando, evidentemente, de maneira exclusiva os processos de insolvência. De todo modo, é a partir desse cenário – do direito concursal – que se visará dar holofote ao acordo mencionado, pois se entende que ele é, ao menos, um pontapé inicial para permitir que essa “classe de ativos” possa atender aos fins colimados pelo legislador aos processos falimentares.

O caso do “Faraó dos Bitcoins” e a decisão do STJ acima invocada ressaltam a complexidade e os desafios associados à gestão de criptoativos em processos de insolvência. A introdução do Acordo de Cooperação Técnica no 133/2024 pelo CNJ surge como resposta crucial a essas questões, promovendo maior segurança jurídica e eficiência nos processos, o que será abordado a seguir.

Cenário: criptoativos passam a ser o “dia a dia” dos brasileiros – Rasamente falando, criptoativos são ativos digitais que utilizam tecnologias de criptografia e blockchain para garantir a segurança e a transparência das transações. Entre os criptoativos mais conhecidos estão as criptomoedas, como Bitcoin e Ethereum, mas o termo também abrange outros tipos de tokens e ativos digitais baseados em blockchain.

A relevância dos criptoativos no mercado financeiro e jurídico brasileiro tem crescido de forma significativa. No segmento financeiro, esses ativos têm atraído investidores e empresas devido a sua aparente inovação, potencial de alta valorização e a descentralização que oferecem. O mercado de criptoativos tem mostrado crescimento acelerado, desafiando o sistema financeiro tradicional e criando novas oportunidades de investimento e de negócios.

No campo jurídico, a ascensão dos criptoativos tem trazido à tona uma série de desafios e questões regulatórias. As autoridades brasileiras e o sistema judicial têm enfrentado a necessidade de adaptar suas abordagens para lidar com sua natureza complexa e global. Questões relacionadas à regulamentação, tributação e resolução de disputas envolvendo criptoativos estão cada vez mais em foco, refletindo sua crescente importância e impacto no panorama jurídico do país.

Dessa forma, a crescente integração dos criptoativos no mercado financeiro brasileiro e o aumento de questões jurídicas associadas a eles evidenciam a necessidade de framework regulatório robusto e atualizado, capaz de endereçar complexidades e garantir a segurança e transparência necessárias.

Ademais, a adesão do Brasil ao Crypto-Asset Reporting Framework (Carf), uma diretriz estabelecida pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), constitui marco significativo na evolução regulatória nacional. O Carf proporciona modelo de intercâmbio automático de informações sobre ativos digitais, com o intuito de padronizar e facilitar o compartilhamento de dados financeiros entre os países membros da OCDE. Este framework visa combater a evasão fiscal e promover maior transparência nas transações de criptoativos, oferecendo aos governos controle mais rigoroso sobre as movimentações financeiras internacionais.

Neste contexto, a celebração do Acordo de Cooperação no 133/2024 do CNJ adquire especial relevância. A integração ao Carf reforça o compromisso do Brasil com ambiente regulatório global avançado, alinhando-se às melhores práticas internacionais para prevenir o uso inadequado de criptomoedas em atividades ilícitas, como a lavagem de dinheiro e a sonegação fiscal. O acordo de cooperação, portanto, não apenas reflete a adesão brasileira a normas globais de combate a fraude e evasão fiscal, mas também fortalece a capacidade do Poder Judiciário de monitorar e regular eficazmente as transações envolvendo criptoativos.

É nesse contexto que é editado o Acordo de Cooperação Técnica no 133/2024. 

Do Acordo de Cooperação Técnica no 133/2024 do CNJ – No dia 27/08/2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABCRIPTO) celebraram o Acordo de Cooperação Técnica (ACT) no 133, publicado em 02/09/2024, visando implementar novas medidas – em diferentes módulos/etapas – para aproximar o mercado de criptoativos e criptomoedas do Poder Judiciário.

A proposta contempla a criação de medidas educacionais e disseminação de conhecimento, além de importantes ações de integração e otimização na localização desses ativos, através do sistema que facilita a tramitação de ofícios expedidos pelo Poder Judiciário para obtenção de informações e constrições de valores, em moeda fiduciária ou virtual, armazenadas em Prestadoras de Serviços de Ativos Virtuais (PSAV).

O acordo mencionado estabelece, ainda, compromissos e responsabilidades para ambas as partes envolvidas. O CNJ e a ABCRIPTO se comprometem a designar funcionários para executar as atividades estipuladas no acordo, oferecer suporte e esclarecer eventuais dúvidas. Ambas as partes devem supervisionar e garantir o adequado desenvolvimento das atividades, notificando prontamente qualquer incidente que possa comprometer a execução do acordo. A fiscalização será realizada por representantes designados, que também deverão reportar quaisquer falhas ou irregularidades. A ABCRIPTO ficou responsável por fornecer as chaves de acesso e suporte técnico necessários para integrar seus sistemas à Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ).

O cronograma do Termo de Cooperação estabelece, a partir de setembro de 2024, a Integração Tecnológica, visando facilitar a comunicação eletrônica entre Poder Judiciário e as Prestadoras de Serviços de Ativos Virtuais (PSAV). Para tanto, está previsto o lançamento do Sistema (Módulo Ofícios), que disponibilizará ao Judiciário versão beta do Sistema Brasileiro de Interligação do Mercado de Criptomoedas, Criptoativos e Ativos Digitais, para um grupo seleto de participantes. A adesão das PSAVs será promovida por meio da publicação de instrução normativa recomendando o cadastramento de todas elas no sistema.

Ainda, será lançado o Módulo Custódia, programado para julho de 2025, que buscará a integração de “método” de custódia dos criptoativos ao Sistema Brasileiro de Interligação do Mercado de Criptomoedas, Criptoativos e Ativos Digitais, aprimorando a gestão desses ativos pelo Judiciário. Ademais, o acordo ainda contempla em seu plano de trabalho o “Módulo Liquidação”, cujo lançamento está previsto para janeiro/2026, tendo como objetivo o desenvolvimento e integração da capacidade de liquidação de criptoativos no Sistema Brasileiro de Interligação do Mercado de Criptomoedas, Criptoativos e Ativos Digitais ao Poder Judiciário.

Desafios Jurídicos com Criptomoedas na Insolvência – Com o exponencial crescimento da utilização de ativos digitais, a ocultação patrimonial também ganhou nova roupagem. Seja por meio dos conhecidos esquemas de pirâmides financeiras ou sofisticadas formas de pulverização, o escoamento de representativas quantias via ativos virtuais se tornou prática comum para fraudar credores.

Nesse sentido, os avanços pretendidos pelo Acordo de Cooperação Técnica no 133/2024 do CNJ impactam de forma positiva as execuções individuais ou coletivas, como no caso das falências.

É claro que sem pretender esgotar possíveis entraves que as criptomoedas possam “impor” aos processos de insolvência, aventam-se os das seguintes ordens:

Valoração e Avaliação: a volatilidade extrema dos criptoativos torna difícil determinar seu valor real e justo durante uma insolvência, acarretando possível complicação à liquidação e à divisão dos ativos entre os credores.

Rastreabilidade e Confidencialidade: embora as transações em blockchain sejam registradas, a identificação dos proprietários reais dos criptoativos pode ser complexa devido ao anonimato e à natureza descentralizada deles.

Liquidez: a conversão de criptoativos em moeda fiduciária pode ser problemática, especialmente em mercados em que há pouca liquidez ou regulamentação inadequada, o que pode impactar a eficácia da recuperação de ativos.

Segurança e Custódia: os criptoativos precisam ser armazenados com segurança para evitar roubo ou perda, sendo que sua gestão e proteção exigem conhecimentos especializados e sistemas de segurança robustos.

Regulação e Jurisdição: a regulamentação dos criptoativos é ainda incipiente e varia significativamente entre jurisdições, o que pode gerar complicações legais e processuais durante o processo de insolvência.

Pois bem, o Acordo de Cooperação Técnica no 133/2024 do CNJ vem com o escopo de melhorar a capacidade do sistema judicial de lidar com criptoativos em processos de falência, promovendo maior transparência, eficiência e segurança – alinhando-se aos princípios de razoável duração do processo e de participação ativa e proteção dos credores estabelecidos pela legislação vigente, senão vejamos.

O Acordo de Cooperação Técnica no 133/2024 do CNJ promete impactar positivamente os processos de falência que envolvem criptoativos de diversas maneiras. Primeiramente, o acordo promove a integração dos sistemas judiciais com plataformas digitais, proporcionando acesso mais eficiente e transparente às informações sobre criptoativos. Isso facilita sua identificação e avaliação na massa falida, oferecendo visão mais clara do patrimônio disponível.

Além disso, a colaboração entre o CNJ e a ABCRIPTO permitirá que as exchanges de criptoativos forneçam informações de forma mais acessível e colaborativa ao Judiciário. Essa cooperação é crucial para localizar e recuperar criptoativos, e para implementar medidas como o bloqueio de recursos, fundamentais para a liquidação eficiente da massa falida.

O novo sistema também contribuirá para a redução do tempo e da complexidade dos processos de falência, tornando-os mais ágeis. A integração tecnológica aprimora a capacidade dos administradores judiciais de monitorar e gerenciar criptoativos, otimizando sua recuperação e distribuição.

Adicionalmente, o acordo possibilita a implementação de controles mais rigorosos sobre os criptoativos, aumentando a segurança e prevenindo fraudes. Isso garante que sejam geridos de forma segura e de acordo com as diretrizes legais.

Conclusão – Sabe-se que não será o Acordo de Cooperação Técnica no 133/2024 do CNJ o instrumento que “resolverá” as dificuldades atinentes ao intercâmbio de informações entre o mercado de criptoativos e o Poder Judiciário. Todavia, há que se salientar que o ajuste entabulado tem, sim, potencial considerável para transformar o manejo de criptoativos em processos de insolvência no Brasil, proporcionando base mais sólida de conhecimento, maior eficiência na recuperação de ativos e abordagem mais integrada e regulada para lidar com o crescente mercado de criptoativos.

Sabe-se que maior transparência e eficiência no processo de recuperação de criptoativos permitirá que os credores participem de maneira mais ativa e informada.

Identifica-se, assim, alinhamento entre o teor do acordo objeto do presente ativo e os princípios da Lei no 11.101/2005, fomentando que naqueles processos em que identificados ativos virtuais como objeto da “massa” tenha-se um processo de falência conduzido de forma mais justa e eficiente.