A reforma do Código Penal brasileiro: Consequências para as operações militares na vigência da Lei Complementar nº 97/99

14 de fevereiro de 2013

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Introdução
Modernizar o sistema judiciário tornando-o mais célere, sem contudo comprometer a Justiça, tem sido o objeto de estudos de muitos.

Em busca dessa modernização de nosso sistema jurídico, as modificações ocorreram ao longo dos últimos tempos de maneira pontual, mormente para atender mais a opinião pública do que propriamente as reais necessidades. Segundo a majoritária doutrina, os entraves maiores para a lentidão da Justiça, entendida esta, também, como a prestação jurisdicional célere e justa, são a falta de estrutura do Poder Judiciário para atender a crescente demanda, o que por si só representa um dado positivo, em razão do maior acesso à justiça, e uma legislação caótica, em especial na área penal, ante a existência de uma infinidade de leis, muitas vezes contraditórias.

Aliado a esse emaranhado de leis penais temos um sistema processual que privilegia o caráter protelatório dos recursos, o que invariavelmente leva à materialização do adágio popular de que “no Brasil só vai para a cadeia o ladrão de galinhas”, haja vista o número insignificante de condenações de determinados crimes, em especial os assim denominados crimes do colarinho branco.

Tramita no Senado Federal proposta versando sobre a reforma do Código Penal Brasileiro (CPB). A reforma sob comento busca harmonizar o emaranhado de leis, muitas delas com tipos penais inseridos em normas de índole diversa da esfera criminal.

Dentre as “novidades” propostas no trabalho apresentado pela Comissão, merece destaque, por guardar relação com o presente trabalho, a inclusão de tipos penais previstos no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, constantes do Título XVII (Dos Crimes de Guerra), da Parte Especial.

Nesse ponto, a proposta de reforma do CPB destina-se a cumprir a exigência constitucional de respeito aos princípios da taxatividade e da reserva legal, a exigir lei stricto sensu, o que tornaria possível a persecução dos tipos penais previstos nos tratados internacionais, aos quais o Brasil aderiu.

A inclusão dos tipos penais, próprios dos conflitos armados1, no ordenamento jurídico nacional representa um avanço do Brasil na incorporação dos preceitos do Direito Internacional Humanitário (DIH).

Contudo, a inovação proposta restrita somente à legislação penal comum acarretará o esvaziamento da justiça militar, o que poderá, em tese, levar à insegurança jurídica no emprego das Forças Armadas, em especial nas operações de garantia da lei e da ordem.

1. Direito internacional humanitário

Este ramo do direito internacional pouco estudado no Brasil, em especial no meio militar, começa a ser difundido com a denominação de Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA), o Direito Internacional Humanitário muitas vezes é confundido com os Direitos Humanos, esse afeto ao Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Cumpre assinalar que, tanto um quanto outro tratam do conjunto de normas que visam à proteção das pessoas ou grupos de pessoas, entretanto, as regras de DIH são destinadas a resolver as questões surgidas durante um conflito armado, internacional ou não internacional, protegendo as pessoas e bens não envolvidos com o esforço de guerra.

Assim, no âmbito de incidência das regras do DIH o monopólio da violência pelo Estado passa a ser exercido, também, pelo agente estatal participante das hostilidades.

As infrações às normas do DIH somente eram objeto de processo e julgamento depois de encerradas as hostilidades, com a instalação de Tribunais Ad Hoc, que visavam atender aos princípios da justiça penal universal, entendida esta como a obrigação assumida pelos países de aplicar as sanções penais decorrentes dos tratados internacionais, em especial as Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais.

Art. 49 – (…)

Cada Parte Contratante terá a obrigação de procurar as pessoas acusadas de terem cometido, ou dado ordem de cometer, qualquer das infrações graves, devendo fazê-las comparecer perante seus próprios tribunais, seja qual fôr a sua nacionalidade. Poderá também se preferir e de acôrdo com condições previstas em sua própria legislação, entregar as referidas pessoas, para que sejam julgadas a uma outra Parte Contratante interessada na ação, contanto que esta última tenha apresentado contra elas provas suficientes. (Convenção de Genebra I, de 12 de agosto de 1949, para a melhoria das condições dos feridos e dos enfermos das Forças Armadas em Campanha (CG I), com idêntica redação: CG II, Art. 50; CG III, Art. 129; e, CG IV, Art. 146). (grifo nosso)

A fim de garantir maior legitimidade aos julgamentos e impedir que as graves violações das normas do Direito Internacional Humanitário continuassem impunes, foi assinado em 17.7.1998, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI), promulgado no Brasil por intermédio do Decreto nº 4.388, de 25.9.2002.

O Brasil, tradicionalmente, participou de todos os esforços diplomáticos para criar os preceitos éticos e jurídicos do Direito Internacional Humanitário, mas esse ativismo no plano diplomático não foi acompanhado de sua implantação na ordem interna. Vale dizer, a República Federativa do Brasil assinou e ratificou as Convenções de Genebra em 8.12.1949 e 29.6.1957, respectivamente, aderindo aos Protocolos Adicionais I e II às Convenções, em 5.5.1992, mas, transcorridos meio século daquelas e vinte anos desses, os mesmos ainda não foram internalizados.

Com a internalização do Estatuto de Roma, dada a complementariedade de sua jurisdição e ante a inexistência de lei em sentido estrito que tipificasse os crimes de
guerra, estava o Estado Brasileiro, em tese, sujeito a entregar ao TPI os seus nacionais, no caso de infração aos crimes descritos no artigo 5º, 1, daquele Estatuto, pois, atualmente, no ordenamento jurídico pátrio a menção aos crimes de guerra encontra previsão no Código Penal Militar (CPM), editado pelo Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969, sem, contudo, guardar identidade com os previstos no Estatuto de Roma.

Os tipos penais previstos no CPM estão vocacionados a garantirem o jus ad bellum – direito de o Estado recorrer ao uso da força contra outro Estado – em detrimento do jus in bello, direito que protege as vítimas e limita os meios e métodos da guerra. No campo do direito internacional esta proteção está materializada nas Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais.

Decorrida uma década da promulgação do Estatuto, tramita no Senado Federal o PLS 236/2012, conforme anteriormente mencionado, sendo relevante para este trabalho verificar suas implicações para o emprego das Forças Armadas, sob a égide da LC 97/99, em especial em razão da previsão do Art. 15, § 7º.

Por expressa previsão constitucional, os crimes militares são da competência da Justiça Militar. Esses crimes, para os fins previstos no texto da Carta Política, estão definidos no CPM, citado alhures, diploma legal vigente que define os limites temporais para aplicação da lei penal militar, se em tempo de paz ou em tempo de guerra (entendida esta como conflito armado). Em tempo de paz, os tipos penais militares são aqueles previstos no CPM, mesmo que com igual redação na lei penal comum (Art. 9º, I e II); em tempo de guerra, os previstos no Art. 10 (I, II e III), exigindo para esses o princípio da anterioridade penal militar, ressalvando no inciso IV, do mesmo artigo, a possibilidade de previsão apenas na lei penal comum

Entretanto, a competência da Justiça Militar para processar e julgar os crimes militares em tempo de guerra, não previstos no CPM, decorre do cumprimento ao previsto no Art. 15, desse Código:

Art. 15 – O tempo de guerra, para os efeitos da aplicação da lei penal militar, começa com a declaração ou o reconhecimento do estado de guerra, ou com o decreto de mobilização, se nele estiver compreendido aquele reconhecimento; e termina quando ordenada a cessação das hostilidades. (grifo nosso)

Assim, para que os crimes de guerra, previstos no Título XVII do Anteprojeto, sejam da competência daquela justiça especial, obrigatoriamente, deverá o Estado Brasileiro reconhecer o estado de conflito armado, seja ele de caráter internacional ou não internacional, o que é vedado pela Carta das Nações Unidas, sendo aceito, somente, o exercício da legítima defesa, em caso de ataque.

Nessa situação hipotética, um integrante das Forças Armadas no exercício de seu dever constitucional, ao ser empregado nos termos do Art. 15, da LC 97/99, estará sujeito, em tese, ao julgamento pela justiça comum.

Atualmente, é controversa, na doutrina e na jurisprudência das cortes internacionais, a definição de conflito armado não internacional nos termos em que está sendo proposto:

Art. 506 – Considera-se conflito armado não internacional todo conflito armado que não esteja coberto pelo art. 503 e que se desenrole em território de um Estado.
Parágrafo único. Não se consideram conflito armado não internacional as situações de distúrbios e tensões internas, tais como motins, atos de violência isolados e esporádicos e outros atos análogos.

Assim, demonstra ser temerária a inclusão, no corpo do CPB, de conceitos jurídicos ainda não pacificados na doutrina e na jurisprudência.

2. Conflitos armados internacionais e não internacionais

Desde a sua previsão no PROTOCOLO ADICIONAL II, a conceituação de conflito armado não internacional (CANI) é tema que não tem alcançado uniformidade.

Se de um lado conceituar o conflito armado internacional é incontroverso, em razão de que, obrigatoriamente, estarão presentes dois Estados, sem os quais tal definição não encontra eco, de outro, será tormentosa a definição de conflito armado não internacional.

O conceito de CANI deve ser buscado em duas importantes fontes: o artigo 3º comum às Convenções de Genebra, de 1949 “No caso de conflito armado sem caráter internacional e que surja no território de uma das Altas Partes Contratantes, cada uma das Partes em luta será obrigada a aplicar pelo menos, as seguintes disposições“, e o artigo 1º, do PROTOCOLO ADICIONAL II (PA II), de 1977:

Artigo 1º – Âmbito de aplicação material
1 – O presente Protocolo, que desenvolve e completa o artigo 3., comum às Convenções de 12 de Agosto de 1949, sem modificar as suas condições de aplicação atuais, aplica-se a todos os conflitos armados que não estão cobertos pelo artigo 1.·do Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949, Relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais (Protocolo 1), e que se desenrolem em território de uma Alta Parte Contratante, entre as suas forças armadas e forças armadas dissidentes ou grupos armados organizados que, sob a chefia de um comando responsável, exerçam sobre uma parte do seu território um controle tal que lhes permita levar a cabo operações militares continuas e organizadas e aplicar o presente Protocolo.

Da análise do primeiro texto, o artigo 3º comum, verifica-se que a conceituação parte de um conceito negativo, pois trata dos conflitos que não tenham caráter internacional, ou seja, não envolvem dois ou mais Estados, e, no segundo, o artigo 1º do PA II, encontramos a controvérsia de toda busca de um conceito aceito pela doutrina e pela jurisprudência, ao menos para a majoritária.

Primeiro, porque para conceituar o CANI importa identificar e reconhecer a existência do grupo armado – organizado e sob um comando responsável, e, ainda, que aquele grupo detenha o controle de parte do território do Estado envolvido, o que lhe permitiria executar operações tipicamente militares, contínuas e organizadas.

Reconhecer objetivamente tais características em um grupo armado determinado é tarefa das mais difíceis, em especial em decorrência da resistência dos Estados em reconhecer tal estatuto jurídico, em razão da proteção a ser dada aos combatentes assim reconhecidos.

A conceituação proposta no Art. 506, do anteprojeto, prima facie, permitiria que grupos armados buscassem proteção nos organismos internacionais. Nesses organismos, além das características elencadas: comando responsável, domínio territorial e capacidade operacional, outros critérios têm sido empregados para caracterizar um conflito armado como não internacional.

O Estatuto de Roma faz menção às graves violações do artigo 3º comum, em seu artigo 8(2)(d), entretanto, no mesmo artigo (parágrafo f), introduz um novo critério, o caráter prolongado das hostilidades: Transcrevo:

f) A alínea e) do parágrafo 2º do presente artigo aplicar-se-á aos conflitos armados que não tenham caráter internacional e, por conseguinte, não se aplicará a situações de distúrbio e de tensão internas, tais como motins, atos de violência esporádicos ou isolados ou outros de caráter semelhante; aplicar-se-á, ainda, a conflitos armados que tenham lugar no território de um Estado, quando exista um conflito armado prolongado entre as autoridades governamentais e grupos armados organizados ou entre estes grupos. (grifo nosso)

A redação do mencionado arquivo tem suscitado o seguinte questionamento na doutrina: se o parágrafo (2f) visa esclarecer o parágrafo (2d) ou, ao contrário, propõe um novo tipo de conflito armado não internacional.

Dada a referência explícita ao critério de duração (“conflito armado prolongado”), cabe perguntar se o parágrafo (2) (f) se limita a esclarecer os termos do parágrafo (2)(d) sem estabelecer outra categoria de conflito ou se, ao contrário, propõe um tipo diferente de conflito armado não internacional, com o qual definiria um novo âmbito de aplicação. Esta questão é objeto de controvérsia e ainda não está resolvida. (tradução livre)

O posicionamento das cortes internacionais tem refletido esta controvérsia; no julgamento perante o Tribunal Penal Internacional, no caso Lubanga Dyilo, Causa ICC-01/04-01/06-803. A redação do artigo 506, anteriormente citado, conceituando o conflito armado não internacional, não afasta a possibilidade de que atos de violência praticados contra o Estado, ou seus agentes, tenham definição distinta nas cortes internacionais. Nesse sentido, o ocorrido na República da Argentina quando um ataque a uma organização militar daquele país foi caracterizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como uma situação de conflito armado não internacional, para os fins do Direito Internacional Humanitário. Transcrevo:

154 – A Comissão, depois de haver avaliado os fatos de maneira cuidadosa, considera que os atos violentos que ocorreram no quartel de La Tablada, nos dias 23 e 24 de janeiro de 1989, não podem ser corretamente caracterizados como uma situação de distúrbios internos. O que ali ocorreu não equivale a demonstrações violentas em grande escala, estudantes que jogam pedras em policiais, bandidos que tomam reféns para obter resgate, ou o assassinato de funcionários do governo por razões políticas, todas elas formas de violência interna que não reúnem as características de conflitos armados.
155. Os fatos acontecidos no quartel La Tablada se diferenciam das situações mencionadas, porque as ações empreendidas pelos atacantes foram atos hostis combinados, dos quais participaram diretamente forças armadas do governo, e pela natureza e grau de violência dos fatos em questão. Mais concretamente, os incursores participaram de um ataque armado que foi cuidadosamente planejado, coordenado e executado, v.g. uma operação militar contra um objetivo militar característico: um quartel. O oficial no comando do quartel de La Tablada procurou, como era seu dever, rechaçar o ataque; e o Presidente Alfonsín, no exercício de suas faculdades constitucionais de Comandante em Chefe das Forças Armadas, ordenou que se iniciara uma ação militar para recuperar o quartel e submeter os atacantes.
156. Portanto, a Comissão conclui que o choque violento entre os atacantes e os membros das forças armadas argentinas, apesar de sua curta duração, ativou a aplicação das disposições do artigo 3 comum, assim como outras normas relevantes para a condução de conflitos internos.2 (grifo nosso)

O que motivou a decisão da CIDH foi o fato de que pessoas vinculadas ao grupo atacante questionaram o fato de não ter sido respeitado o estatuto de prisioneiro de guerra. Cumpre salientar que o Estado Argentino foi condenado.

Aspecto relevante a ser observado é que a caracterização de um conflito armado, de índole não internacional, é realizada durante ou após a sua verificação, vale dizer, não há na história o reconhecimento prévio de tais conflitos. Assim, no caso de emprego das Forças Armadas em razão da LC 97/99, a competência para processar e julgar possíveis violações aos tipos penais propostos no Título XVII será verificada quando, e se, reconhecida a existência de um conflito armado não internacional.

Dessa forma, a inclusão da conceituação de conflito armado não internacional, em tese, será temerária aos interesses do Estado Brasileiro, em razão de que as Forças Armadas ao serem empregadas em sua missão constitucional estarão, em tese, sujeitas à dupla jurisdição penal.

Considerações finais

O caminho seguido pelo presente trabalho está limitado à compreensão da inclusão, no ordenamento jurídico pátrio, de aspectos próprios do Direito Internacional Humanitário, anteriormente conhecido como Direito da Guerra, e, no Brasil, em especial no âmbito das Forças Armadas, como Direito Internacional dos Conflitos Armados.

Conforme resumidamente tratado, tal ramo do direito internacional destina-se, na realidade, em buscar organizar a condução das hostilidades, vale dizer, limitar os meios e os métodos empregados na guerra. A finalidade maior de tal ramo da ciência jurídica é minimizar os efeitos, se isto for possível, na condução da violência estatal, protegendo as pessoas e os bens não empregados diretamente no esforço da guerra. O Direito Internacional Humanitário, que não se confunde com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, regula um lapso temporal determinado, isto é, o tempo da guerra.

Assim, ao regular as relações jurídicas entre os Estados, no caso de um conflito armado internacional, ou destes e grupos determinados, no caso de conflito armado não internacional, o DIH limita aos combatentes legitimamente identificados o emprego de meios e métodos de guerra, o que representa, na realidade, a expressão maior da violência do Estado, nesse caso para os combatentes alguns dos direitos humanos restam mitigados, em especial, pelo seu valor histórico: o direito à vida.

Ao permitir, em tese, que grupos armados nacionais possam buscar a proteção do DIH, alargando o campo de incidência do Direito Internacional Humanitário em detrimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos representa um contrassenso. A redação proposta para a conceituação dos conflitos armados poderia, em tese, estimular grupos criminosos organizados atuantes no cenário nacional a buscarem o reconhecimento do status de combatente, com isso integrantes de grupos criminosos estariam, legalmente, autorizados a usarem da violência contra o Estado, o que parece não ser o objetivo da reforma ora proposta.

Finalmente, a inclusão de preceitos dos Direitos Internacionais Humanitários em decorrência dos compromissos internacionais assumidos, em especial do Estatuto de Roma, não deve fragilizar a competência da Justiça Militar, principalmente, ao afastar a incidência para processar e julgar os crimes propriamente militares, como o são os crimes de guerra.