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A mediação extrajudicial de conflitos nas relações de transporte coletivo de passageiros

14 de junho de 2016

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Em recente seminário, em Salvador, organizado pelas Escolas Superiores da Magistratura Nacional sobre mediação vi e ouvi, pela vez primeira, Ministros, Desembargadores e Juízes ressaltando a necessidade de se estimular, mais e mais, as soluções consensuais e extrajudiciais de conflitos jurídicos e de interesses, não só para desafogar o tão assoberbado Judiciário, como, principalmente, para fomentar a cultura da mediação de conflitos de qualquer natureza que tenham por objeto bens jurídicos disponíveis ou passíveis de transação.

Registro que, de certa forma, foi como se abrissem as portas para uma visão mais ampla dos processos de solução dos conflitos fora do Judiciário, legal, mas, não, necessariamente, estatal.

Sempre considerei distante da realidade a postura monopolista do Judiciário com base em interpretação anacrônica do princípio da liberdade de acesso à justiça, quando esta, como valor supremo do ser humano, não será de livre acesso se não for por caminhos eficazes ao seu alcance efetivo, especialmente no tempo. O livre acesso de entrada, mas com saída obstruída, na verdade, não é livre.

Inegavelmente, surge uma nova concepção no Brasil de que a solução de conflitos não passa, necessariamente, pelo Judiciário, mercê de uma geração de Ministros, Desembargadores e Juízes que não só incorporaram, mas lideraram uma nova legislação sobre mediação e arbitragem, além de um novo Código de Processo Civil que prestigia, de forma prioritária, a solução consensual dos conflitos, com inovações que compreendem não só a audiência obrigatória de mediação, como os negócios processuais sobre procedimento, competência e prova, que possuem, como pano de fundo, o mesmo embasamento filosófico da solução consensual.

No primeiro aniversário da Lei no 13.140, de 26 de junho de 2015, que dispõe sobre a mediação como meio de solução de controvérsias, rendo minhas modestíssimas homenagens ao Ministro Luis Felipe Salomão por todo o esforço que desenvolveu e vem desenvolvendo em prol da arbitragem e da mediação na solução consensual de conflitos de direito ou de simples interesses no Brasil. 

Há, no entanto, obstáculo a se transpor para que a mediação no Brasil alcance os mesmos índices de bom êxito que encontra em outros Países. Falo da mediação extrajudicial que, sem sombra de dúvida, é o modo mais eficaz de se solucionar por inteiro o conflito sem sua judicialização.

Esse obstáculo ainda remanesce, na minha opinião, na crença de que só o Estado, pelo Judiciário, pode, realmente, assegurar o acesso à Justiça, que, propositadamente, gravo com maiúscula, por sua suprema liderança entre os valores que asseguram a dignidade ao ser humano. 

Estou a falar da eficácia extintiva plena dos acordos celebrados na mediação extrajudicial. 

Não creio que a mediação extrajudicial tornar-se-á modo eficaz de solução consensual de conflito, apesar de sua bem-vinda expressão legal, se não for assegurada ao acordo resultante desse procedimento a eficácia plena extintiva do conflito, como ocorre com a arbitragem, ressalvados, evidentemente, os vícios de nulidade dos atos jurídicos em geral, seja em relação aos elementos essenciais de qualquer negócio jurídico, seja em relação à figura do mediador que não observa os deveres estabelecidos na lei. 

A livre disposição de direitos, mesmo os patrimoniais, encontra, hodiernamente, barreiras de cunho ideológico, ou não, na medida em que avultam os
interesses sociais sobre os individuais, sem se entrar no mérito do acerto, ou não, da forma de equilíbrio da balança social.

Assim sendo, desde os pressupostos de admissibilidade da mediação contidos na lei aniversariante, até o conceito de disponibilidade ou de transigibilidade que varia segundo a íntima ideologia dos juristas, é justo o receio de que, na mediação, o devedor que paga possa não obter a quitação regular, notadamente em relações jurídicas que recebem tutela específica do Estado legislador, em maior ou menor peso. 

Nesse sentido, é a própria Lei no 12.140/2015 que acena, em cláusula aberta ou conceitos indeterminados de índole político-ideológica, maior rigor na eficácia do procedimento de mediação quando se trate de direitos indisponíveis que admitam transação, condicionando o acordo à homologação em juízo, com oitiva do Ministério Público. Não há qualquer incorreção. A questão está em que daí – em relação à natureza dos direitos – se desce na pirâmide da disponibilidade e não se sobe. 

O risco está em se inverter a pirâmide e se partir da indisponibilidade para a indisponibilidade transigível e dessa para a disponibilidade, que pode resultar remota, para efeito de eficácia extintiva plena do acordo na mediação.

Penso, por isso, que a lei deve ser mais clara em relação aos direitos objeto de mediação, não se circunscrevendo a afastar os direitos trabalhistas para uma lei especial, por óbvio em se referindo aos direitos individuais.

Até porque, mesmo os direitos individuais trabalhistas, podem ser objeto, em relação aos créditos decorrentes e não aos direitos propriamente ditos, objeto de transação, inserindo-se no conceito geral de direitos indisponíveis que admitam transação.

No entanto, toda essa cautela da lei aniversariante, sem embargo, repito, da sua suprema oportunidade, pode ensejar uma interpretação que resulte na sua inocuidade, como, de resto, ocorreu, com o art. 625-D da Consolidação das Leis do Trabalho. 

As relações de transporte coletivo de passageiros por qualquer modalidade estão sujeitas a múltiplas disciplinas, com maior ou menor nível de disponibilidade de direitos.

Nelas encontram-se as relações de consumo e as de trabalho, a par da própria relação de transporte, cada qual com seu nível de autonomia de vontade para solução de conflitos delas surgidos.

Não encontro, porém, em qualquer delas, mesmo as trabalhistas, mas, principalmente, as de relação de consumo e de transporte incólume do passageiro ao destino, qualquer embaraço ao nível dos direitos que possa obstar uma eficácia plena de acordo celebrado em mediação extrajudicial. 

A título de curiosidade, pode-se ter um conflito de responsabilidade civil objetiva de transporte coletivo de passageiro e um conflito, envolvendo o mesmo passageiro, de acidente de trajeto de trabalho, cada qual com seu sujeito passivo – transportador e empregador – de julgamento por jurisdições diversas. Seria o primeiro passível de mediação e o último não? Não cabe aqui essa discussão.

Aqui o que cabe é demonstrar que, independentemente do objeto do conflito, ainda que, corretamente, se exija, para alguns casos, a intervenção do Ministério Público e a homologação judicial, é preciso ficar clara a eficácia liberatória do devedor em relação ao credor, tal como ocorre na arbitragem, sob pena de tornar mais uma lei de arquivo a lei da mediação,
levando consigo seus inegáveis e relevantes efeitos culturais, econômicos e sociais. 

Finalmente, apesar do receio, que espero superado na prática, não tenho a menor dúvida de que os acordos celebrados em mediação extrajudicial de conflitos de relação de consumo e de responsabilidade das transportadoras, no segmento econômico do transporte coletivo de passageiros, podem e devem ser objeto dessa modalidade de solução consensual de conflito, individual ou coletivamente (esta última já admitida em lei ou ato normativo – Ato 168/TST.GP e art. 107 e parágrafos do CDC).