A linguagem politicamente correta: Direito ou dever? De quem?

8 de junho de 2020

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Em recente obra lançada, “Sobre o politicamente correcto”, Manuel Monteiro afirma que essa linguagem “é uma forma hipócrita de lidar com os verdadeiros problemas”. Em entrevista, menciona a existência de petições judiciais contra o Dicionário de Oxford, como exemplo do que seria uma patrulha para que a língua se expressasse segundo esse modelo.

Cremos que aquilo a que se chama de linguagem politicamente correta seja algo muito mais complexo a se analisar, dos pontos de vista social, antropológico, etnológico, com seus reflexos, sempre, no Direito e na Justiça, que, afinal, são a forma positiva em que deveres e direitos se contrastam para o encontro do equilíbrio que molda o próprio equilíbrio social. Sem a chancela de um Direito e uma Justiça atualizados, as convulsões sociais são inevitáveis.

Partamos da obra maior de Schopenhauer, “O mundo como vontade e representação”, em que o antípoda de Hegel questiona por que, àquela época, estava-se usando o termo “Weib” em vez de “Frau” para designar “mulher”. Ele vai muito mais a fundo do que levantar a mera hipótese da hipocrisia para esse ato de renomeação, perguntando se essa preocupação em substituir o nome que se dá às coisas não revela, no fundo, um verdadeiro preconceito em relação à coisa renomeada. Nessa hermenêutica, conclui-se que, de fato, quando se substitui um nome por outro, fica implicado que a coisa renomeada precisa ser mostrada ou definida de maneira eufemística por ser, ela sim, a coisa, como que indigna de um nome que remeta mais diretamente à sua essência.

Ou seja, na acepção biangular de Teun Van Dijk, por exemplo, a cognição (o pensamento) e a relação social de poder estabelecem mecanismos que apontam quais as realidades que devem ser maquiadas, mascaradas. E, por conclusão silogística, se tais ou quais realidades devem ser mascaradas é porque, voltando a Schopenhauer, está implicado que a coisa em si é indigna de pertencer de modo cru ao mundo e ao “jogo de linguagem” das relações hierárquicas de poder, direitos e deveres.

Podemos citar os topônimos (nomes de lugar em geral) como exemplo do complexo de acepções do politicamente correto até aqui mostrado. Ora, sem um significado literal ainda totalmente pleno, ou seja, perdida a “consciência etimológica”, como diria Platão (esses significantes toponímicos não são o que em gramaticalização e lexicalização se poderia chamar de vocábulos lexicais ou plenos), os nomes de países, cidades, bairros, etc. passam a ser eufêmicos ou disfêmicos pelo significante em si, “mostrado ostensivamente” e não “ensinados”, já que é o significante, e não o significado (esvaziado ou perdido) que promove uma descrição utópica ou distópica dos topônimos. Seria uma maneira de demonstrar a sábia hipótese de Schopenhauer alicerçada nos linguistas mais contemporâneos, assim como na clássica e imortal discussão platônica sobre a linguagem e as línguas.

Norman Fairclough, também preocupado com “a ordem do discurso” e “as palavras e as coisas” que Foucault analisa em suas obras homônimas, chega a dizer que a formação ideológica do discurso é cognitivamente anterior à transformação efetiva do mundo. O próprio Saussure, o pai da ciência da linguagem e criador do método estruturalista, já dizia em seu conhecido aforismo: “O ponto de vista precede o objeto”. Essa é a tese central de “Discourse in late modernity”, de Fairclough, e os autores fornecem vários exemplos em que a mídia é patrulhada para moldar e forjar a sociedade da forma hierarquicamente desejável para as classes hegemônicas, e não as periféricas (ele é um pós-estruturalista, como sabemos), perpetuando, na luta de classes (cf. acepção de Marx) o suposto saber (cf. acepções de Freud e Lacan) das oligarquias sociais, como mostra todo o trabalho da Escola de Frankfurt, principalmente na obra de Marcuse “Eros e civilização”, o arquitexto das revoluções sociais estudantis de 1968 no mundo inteiro, notadamente na França, com seu “defense d´interdire” de maio.

O “avesso da psicanálise”, de Lacan, contribui também com o jogo. A sua definição de corpo como “substância gozante” perpassa a obra e, interrogando o método psicanalítico de se chegar, pelo discurso, ao suposto saber da verdade, ele propõe que o discurso revela, antes, um duvidoso saber, que remete ao que Manuel Monteiro, na obra citada, distingue como “o benefício da dúvida” como modo salutar de se encarar a realidade, sempre muito fluida e sempre, sobretudo, questionável sobre os postos hierárquicos e ideológicos que de alguma forma precisam ser nomeados. Essa é, afinal, a grande contribuição de Descartes ao pensamento moderno. Quando Descartes estava à beira da morte na Suécia, na corte da lendária Rainha Cristina, há registro de que ele teria dito: “A dúvida está em tudo. Eu não duvido de que vá morrer, mas duvido de que minha obra também o vá. E o que serei eu senão a minha obra?”

Mencionemos as três Escolas de Viena como preocupadas com o que pode e o que não pode (e como pode) ser nomeado, e o que se depreende dessas formas de nomeação: a de Freud, centrada no prazer; a de Adler, centrada no poder; e a de Frankl, centrada no sentido da vida (a logosofia). Todas elas são construídas em cima dos discursos, e, por isso, a linguagem, nos três casos, foi o alvo principal de investigações para detecções empíricas e teóricas.

É claro que o politicamente correto (terminologia que por si só já é, muitas vezes, politicamente incorreta, diga-se em tempo) pode ocorrer em tentativa de se desfazer o que Pierre Weil, Roberto Crema e Jean-Yves Leloup chamam de “Normose: a patologia da normalidade”. Esse conceito e suas implicações conflagram uma verdadeira revolução de Copérnico nas ciências humanas, com vasto campo ainda a ser explorado, e a sua aplicação na análise e na síntese de vários temas começa a adensá-los, trazendo à luz perspectivas até então escondidas.

Basicamente, a normose é uma norma proveniente de um paradigma social (cf. acepção de Thomas Kuhn sobre as revoluções científicas e sociais) que já deveria ter sido quebrado, mas que permanece amotinado e preso no âmago da sociedade, em seu consenso, gerando “patogenia, sofrimento e morte”, nas palavras de Pierre Weil.

É o caso, por exemplo, da normose do patriarcalismo, que, ilustrada de modo bem estruturalista, põe o homem e suas representações estereotipadas no centro, e a mulher e suas representações estereotipadas na periferia, criando uma normatividade que, bem o sabemos, gera de fato «patogenia, sofrimento e morte». Daí que o Direito, ao reconhecer a disparidade e a desarmonia das relações sociais, muitas vezes cria leis e mecanismos especiais de proteção a grupos que, no pêndulo social, se mostrem mais vulneráveis, muitas vezes com direitos podados não pela Justiça, mas pela prática do convívio social e das interações do dia a dia.

Nesse entendimento, o que se chama politicamente correto possui muitas vezes o intento e até a vocação de atualizar os paradigmas, quebrando definitivamente algum paradigma que já estava caduco, roto, enferrujado, desmoronando, e auxiliando o Direito na sua percepção de mirar sempre a Justiça. Dentro desse aspecto, a linguagem politicamente correta possui, de fato, o condão de corrigir no âmbito político (ou seja, das relações sociais em geral) expressões que vinham distorcidas por um preconceito anterior que as mostrava socialmente com o rótulo linguístico proveniente de tal preconceito.

Na expressão homossexualismo, por exemplo, o sufixo -ismo representa um erro até mesmo do ponto de vista morfológico, lexical, gramatical, além de denunciar a forma como o fato em si era visto socialmente há tempos. A questão é que falamos em sexualidade humana, com o sufixo -dade, e não em “sexualismo” humano. Portanto, todas as palavras derivadas de sexualidade devem ter, para a correção morfológica do vocábulo, o sufixo -dade, e não o sufixo -ismo. Ou seja, o politicamente correto, neste caso, além de acusar um momento pretérito em que a homossexualidade era vista como desvio psíquico e até legal, recebendo, por isso, o sufixo -ismo, revela também o erro lexical, gramatical e morfológico por trás do uso desse mesmo sufixo -ismo, que, para a correção, tanto política quanto gramatical, deve criar o vocábulo homossexualidade, assim como se criou heterossexualidade (e não “heterossexualismo”) e, repita-se, todos os demais vocábulos que derivem da forma vernácula sexualidade, e não “sexualismo”, inexistente.

Há muitos outros grupos de pessoas que clamam por sua não invisibilidade, e essa questão necessita, antes de tudo, que se nomeiem tais grupos, bem como suas aspirações e direitos. Os grupos vulneráveis da normose do patriarcalismo, há pouco aludidos, são importantes exemplos dessa necessidade. Não fazendo parte do poder normótico, central ou hegemônico, muitos grupos perfazem o que Foucault chamaria de “microfísica do poder”, um poder que se avoluma das periferias para o centro, e não do centro para as periferias, e esse espaço-tempo social necessita, para sua legitimação definitiva, do aval do ordenamento jurídico, do Direito, e da efetiva aplicação dessas conquistas por meio dos intérpretes das leis, como os magistrados e os membros do Ministério Público, que fazem sopesar os deveres e os direitos de pessoas que, até pela ausência de nomeação (ou por nomeações estereotipadas), se punham à margem da sociedade, como cidadãos de “segunda ordem”, como diria Simone de Beauvoir sobre as mulheres em “O segundo sexo”.

Nesse sentido, o que muitas vezes é criação de nomeações necessita passar antes de tudo pela aprovação do grupo nomeado, ou geralmente tem sua gênese espontânea e autônoma nesses grupos, em uma atitude antropológica que não se confunde com suposta patrulha, mas vai ao encontro do que poderia ser chamado de politicamente correto na acepção não caricatural, e, sim, plena desse conceito; qual seja, a função perene das sociedades de corrigir politicamente erros, estereótipos e julgamentos sociais já obsoletos do passado. 

Nesses casos, pois, há política, porque há relações de prazer, poder e sentido (voltando a citar as três Escolas de Viena), e o modo de nomear essa política deve, zelando pela Justiça e por ela amparado, ser próximo ao desejável por esses grupos; em outras palavras, deve buscar a correção política. Esse complexo atitudinal faz parte do Estado Democrático de Direito, e é absolutamente legítimo para que não se distorçam os direitos e os deveres de grupos que, como estamos analisando neste momento, até há pouco tempo eram invisíveis, como o comprova a lacuna que deixou por um tempo imperar a ausência de nomes que os trouxessem à luz da sociedade e do Direito, criando um momento, já remediado atualmente, de pretérita injustiça social.

Ainda citando Fairclough, sua obra “Discurso e mudança social” vai ao imo desse aspecto. As mudanças sociais ocorrem, e há que nomear ou renomear situações, fenômenos, atitudes, grupos de pessoas, etc. com a meta de que toda essa gama de fatos não esteja no ponto cego do Direito. Infelizmente, os analistas críticos do discurso ainda não assimilaram a noção de normose às suas visões, embora, em perífrases e paráfrases, esse conceito esteja totalmente explícito nas suas brilhantes conclusões.

Quando Lewis Carroll faz Alice perguntar a Humpty Dumpty o que significa seu nome, eles obtêm como resposta: “Meu nome significa a forma que eu tenho”. Essa resposta supostamente infantil de um livro supostamente meramente lúdico resume toda a questão da nomeação e do politicamente correto, em seus prós e contras, em sua marca de perpetuação hierárquica de poder, prazer, sentido, gozo e verdade. Isso porque, quando o nome e a forma (a coisa nomeada) se encontram num grau de contiguidade bastante relevante, permite-se que se observe o fenômeno nomeado de forma mais justa (contígua), o que fornece ao Direito uma visão mais luminar do fato, coisa ou fenômeno que devem ser observados e julgados. E, muitas vezes, é a esse grau de contiguidade que a linguagem politicamente correta mira.

É claro que pode haver exageros, desvãos, excessos, patrulhas desnecessárias por um tempo. Mas tudo isso faz parte da dinâmica social em seus movimentos tectônicos inevitáveis, que passam muito frequentemente por excessos de zelo, digamos, até que o equilíbrio e a justeza do nome junto à forma (a coisa) sejam novamente instaurados. Trata-se de corrigir as relações, o convívio. Trata-se, em uma palavra, de política no seu estatuto mais legítimo e vital.

A política, afinal, não está apenas nos gabinetes palacianos. A política está, muito antes disso, nas relações sociais das feiras livres e da carnavalização que, por isso mesmo, foram o alvo de interesse de Bakhtin.

Já que mencionamos o grande estudioso Bakhtin, devemos salientar que, conforme nos parece, o humor chamado exatamente de “politicamente incorreto” exerce, com frequência, o mesmo papel de acusar os paradigmas sociais que já deveriam ter sido quebrados, para voltarmos a Thomas Kuhn. Ou seja, na acepção polifônica que o humor traz consigo, as vozes que constroem o dialogismo num episódio “politicamente incorreto” podem convergir para acusar a mesma ausência de atualização e contiguidade entre os fatos contemporâneos e as formas que a sociedade tem de vê-los e nomeá-los.

Sobre os limites desse tipo de humor, entretanto, haveríamos de adentrar em outro espaço de discussão, dada a amplidão do tema. Deixamos registrado apenas que um possível limite deveria ocorrer, sempre, de acordo com o bom senso e, por ser arma que propugna pela justiça social e pela justiça identitária, o principal critério para esse possível limite deveria ser espontâneo e ter como baliza não ofender frontalmente e grosseiramente instituições, fatos, grupos, fenômenos, modos de pensamento, pois, repita-se, é exatamente contra as ofensas e o sofrimento normótico impingidos por setores que detêm o poder hegemônico que o humor “politicamente incorreto”, assim como a própria linguagem politicamente correta, lutam, unidos não por aparente paradoxo ou dicotomia, mas, sim, por subjacente união, complementaridade e convergência de metas.

Os nomes e os discursos, com suas normas de coerção e correção, sugerem a existência de fatos, situações e coisas que muitas vezes incomodam os egos normóticos em seus estágios de Tântalo. O que é “político” e o que é “correto”, portanto, nascem de cognições que pendulam entre o significante e o significado, ora tentando politicamente corrigir um, ora o outro, em um jogo de linguagem que constrói a ordem do discurso, mas que constrói, sobretudo, o discurso da ordem