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A inelegibilidade por rejeição de contas e seus limites

19 de abril de 2013

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Há pouco mais de dois anos, mais precisamente em 7 de junho de 2010, entrou em vigor a Lei complementar nº 135. Tal diploma deu novos contornos normativos à Lei complementar nº 64/90, que estabelece, “de acordo com o art. 14, § 9º da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação, e determina outras providências”.
Trata-se da “Lei da Ficha Limpa”, conotação de cunho popular, que, dentre outras alterações normativas, modificou a redação da alínea “g” do inciso I do art. 1º da Lei complementar nº 64/90:

Art. 1º – São inelegíveis:
I – Para qualquer cargo:
(…)
g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição.

Eis aí, na exegese deste dispositivo, o “fio condutor” desse nosso breve estudo.

Com efeito, a Lei complementar nº 135/10 alterou os parâmetros de inelegibilidade decorrente de rejeição de contas relativas ao exercício de cargos e funções públicas. Sob a égide da regra anterior, bastava que as contas fossem rejeitadas por irregularidade insanável para que o cidadão fosse considerado inelegível. A partir da Lei complementar nº 135/10, para que o agente se torne inelegível, a rejeição de suas contas deve ocorrer “por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente”.

Por comezinho, as condutas que revelarem indícios capazes de configurar ato improbidade administrativa1 devem ser apreciadas e julgadas (apenas) pelo Poder Judiciário. Exige a lei, naturalmente, que o fato seja apurado e julgado em regular processo de conhecimento (art. 17 e ss da Lei de Improbidade). Portanto, qualquer procedimento administrativo, consoante o texto legal, tem natureza preparatória para o respectivo processo judicial, não se cuidando de alternativa para determinar o ato como sendo de improbidade administrativa.

De mais a mais, tal conclusão, quanto à necessidade de processo judicial prévio para que se caracterize o ato doloso de improbidade, decorre de forma direta e expressa do próprio dispositivo em questão: “por decisão irrecorrível do órgão competente”. Ou seja, há que existir decisão judicial transitada em julgado! Sem isso, não há que se falar de inelegibilidade; ao menos com fundamento neste dispositivo.

Também neste novo cenário, condutas culposas, que antes conduziam à inelegibilidade, não mais se prestam para tal fim. A nova regra exigiu que a fattispecie – rejeição de contas – derive de ato intencional e qualificado: improbidade administrativa dolosa.

Aqui surge uma primeira questão de grande relevância hermenêutica. Ao falar em ato “doloso” de improbidade administrativa, a lei impõe ao julgador o dever de analisar o elemento subjetivo da conduta do agente, de modo a abrir espaço para uma eventual “inelegibilidade”. Aliás, a questão relacionada à modalidade “culposa” de improbidade é extremamente tormentosa, em doutrina e jurisprudência, e muitos consideram inconstitucional tal ideia2 . De nossa parte, não admitimos que a improbidade administrativa, por sua natureza, possa resultar de conduta meramente culposa do agente público. A improbidade, e toda a carga “penal” que dela se infere, volta-se para aquilo que vulgarmente chamamos de “devassidão” administrativa. Neste cenário, justificar-se-ia o aspecto altamente punitivo e pedagógico da lei. A ratio, com efeito, é punir aquele que conscientemente atua em prejuízo do interesse público ou, no mínimo, assume, também conscientemente, o risco por sua conduta notadamente faltosa. O Superior Tribunal de Justiça, após muitas “idas e vindas”, parece caminhar parcialmente neste sentido, delineando uma solução intermediária:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. EXIGÊNCIA DO DOLO, NAS HIPÓTESES DOS ARTIGOS 9º E 11 DA LEI 8.429/92 E CULPA, PELO MENOS, NAS HIPÓTESES DO ART. 10. (…) 1. O STJ ostenta entendimento uníssono segundo o qual, para que seja reconhecida a tipificação da conduta do réu como incurso nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa, é necessária a demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo para os tipos previstos nos artigos 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do artigo 10. Precedentes: AgRg no AREsp 20.747/SP, Relator Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 23/11/11; REsp1.130.198/RR, Relator Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 15/12/10; EREsp 479.812/SP, Relator Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Seção, DJe 27/9/10; REsp 1.149.427/SC, Relator Min. Luiz Fux,Primeira Turma, DJe 9/9/10; e EREsp 875.163/RS, Relator Min. Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, DJe 30/6/10. 2. (…) 4. Agravo regimental não provido. (AgRg no AgRg no Ag 1376280 SP 2011/0000431-6, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, j. 13/11/2012, Primeira Turma, DJe 23/11/2012).

Trata-se de debate instigante, mas que extrapola os propósitos estritos deste breve estudo. Fica, contudo, o registro.

Seja como for, o que aqui nos interessa é que, no caso da inelegibilidade, a lei exige o “dolo” do agente. Só se pode imaginar eventual inelegibilidade quando pudermos afirmar que o agente agiu de modo consciente para a produção do resultado. Ponto!
Passemos a enfrentar, então, a questão do julgamento das contas, em si.

Na hipótese dos Chefes do Poder Executivo, as respectivas Cortes de Contas não julgam suas contas, mas apenas emitem parecer prévio de caráter opinativo, inclusive quanto à natureza do vício, se sanável ou não3 . É sobre a Casa Legislativa respectiva que recai a responsabilidade pelo julgamento das contas, na esteira, por simetria, do que preceitua o art. 49, inciso IX, da Constituição da República.

Quanto aos demais ordenadores de despesas, o sistema determina que as contas sejam julgadas pelas Cortes de Contas (art. 71, inciso II, da Constituição). Neste ponto, chama a atenção o disposto ao final da regra que ora examinamos (o art. 1º, inciso I, letra “g”, da LC 64/90): “aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”. Aliás, analisando esta específica regra, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que ela não alcança os Chefes do Poder Executivo4 .

Nesta nossa ordem de ideias, afirmamos que quem julga as Contas é, conforme o caso, a Casa Legislativa ou a Corte de Contas. Mas quem define se o ato que resultou na rejeição das contas caracteriza-se como improbidade administrativa dolosa, ou não, é a Justiça Comum. Destarte, não se vislumbra possibilidade, sob o aspecto jurídico, de avocação de competência jurisdicional – por outros entes – para julgar atos de improbidade, ainda que para fins de inelegibilidade. Simplesmente não existe sustentação constitucional, quiçá legal, para que se promovam julgamentos sumários de tamanha repercussão (eleitoral, política, administrativa, penal, cível etc).

Contudo, o Tribunal Superior Eleitoral tem manifestado entendimento de que, nos casos de inelegibilidade, a ação ordinária de improbidade administrativa não seria imprescindível para a apuração do ato de improbidade e sua natureza. Dessa forma, a Justiça Eleitoral teria o condão de, sponte propria ou a reboque de decisão do Tribunal de Contas, definir se a rejeição de contas deu-se por ato doloso que configure improbidade administrativa. Dentre tantas5 , vejamos decisão a respeito:

A não aplicação de percentual mínimo de receita resultante de impostos nas ações e serviços públicos de saúde constitui irregularidade insanável que configura ato doloso de improbidade administrativa – para efeito da incidência da inelegibilidade prevista no Art. 1º, I, g, da Lei Complementar nº 64/90 (Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 44144. Rel. Min. Henrique Neves da Silva. Publicado no DJE em 6/3/2013).

Não nos podemos alinhar a tal perspectiva praeter legem, que revela verdadeira ruptura do sistema democrático instituído em nossa Carta Republicana.

Além do descompasso com princípio elementar de nossa República, e mesmo sem qualquer competência atribuída constitucionalmente, também salta aos olhos que o Tribunal Superior Eleitoral modulou os efeitos da Lei complementar nº 135/10 de forma diversa da Lei nacional nº 8.429/92. Há, aí, flagrante e injustificável contradição! Nos termos da citada Lei de Improbidade, a ação de improbidade administrativa possui um complexo encadeamento lógico que não se pode acabrunhar.

Não se pode permitir, portanto, que, num “salto triplo carpado hermenêutico”6 , sejam suprimidas todas essas etapas para facultar à Casa Legislativa, à Corte de Contas ou à Justiça Eleitoral, através de simples compulsão de documentação, a definição de configuração – ou não – de ato doloso de improbidade quanto à rejeição de contas. A correspondente ação de improbidade administrativa, proposta obrigatoriamente sob o rito ordinário, perante a Justiça Comum, garante o due process of law.

Alexandre de Moraes, no mesmo sentido, afirma que “a competência para essa hipótese será do próprio Poder Judiciário, nas ações envolvendo atos de improbidade”7.

Pensar diversamente nos conduz a uma situação de absoluta perplexidade. Será que estaríamos diante de um novo tipo de improbidade: a “improbidade administrativa para fins eleitorais”, com procedimento próprio? Mas onde está a lei para sustentar tamanho salto? A resposta desenganadamente é: em lugar algum! Ela não existe! Cuida-se de “voo cego”! E mais: neste caso, forçoso seria admitir que a Lei nacional nº 8.429/92 teria sido tacitamente revogada por decisão da Justiça Eleitoral. Francamente, não há como prosseguirmos, absurdo dos absurdos, nesta direção.

Por isso, repisamos nossa convicção de que cabe exclusivamente à Justiça Comum julgar uma conduta que possa configurar “ato doloso de improbidade administrativa”. E assim fará para todos os efeitos, inclusive aqueles estabelecidos na Lei complementar 64/90 com as alterações trazidas pela Lei complementar nº 135/10.

Não se está aqui, obviamente, a defender a exclusão da competência da Corte de Contas ou do Poder Legislativo, que, conforme o caso, rejeitará ou aprovará contas de ordenadores de despesa. Contudo, a identificação concreta de uma conduta como “improbidade administrativa dolosa” só pode ser feita pela Justiça Comum, em julgamento regular, nos exatos termos da lei.

É necessário, portanto, que nossa Corte Superior Eleitoral revisite o tema e reflita acerca dos efeitos da regra lançada na alínea “g” do inciso I do art. 1º da Lei de Inelegibilidade (LC 64/90), a fim de realinhar o paradigma ora vigente naquela Corte. Há que se observar o devido processo legal para eventuais declarações de inelegibilidade com base em rejeição de contas que configurem atos dolosos de improbidade administrativa. Para tanto, repita-se à exaustão, a palavra final sobre a definição do ato de improbidade – se existe e se é doloso, ou não – cabe exclusivamente à Justiça Comum, Estadual ou Federal, conforme o caso

Notas ________________________________________________________________________________

1 Conforme o rol taxativo lançado nos arts. 9º, 10 e 11 da Lei nacional nº 8.429/92.
2 Para estes, o §4º do art. 37 da Constituição, sistematizado ao caput, desenharia o conceito de improbidade administrativa. E desse conceito seria possível extrair a necessidade do dolo para a constituição do ato de improbidade administrativa. Por todos, ver Aristides Junqueira (Reflexões Sobre Improbidade Administrativa no Direito Brasileiro, em Improbidade AdministrativaQuestões Polêmicas e Atuais. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 88-89) e Carlos Ari Sundfeld e Jacinto Arruda Câmara (Improbidade Administrativa de dirigente de empresa estatal, em Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 4, n. 12, p. 9-32, janeiro/março de 2006, p. 18-23).
3 E aqui surge um problema concreto. Nos julgamentos, o que se verifica, como regra, é o absoluto silêncio dos Tribunais de Contas a respeito da natureza do vício, o que traz graves prejuízos para a harmonização do sistema; pois, na maioria dos casos, não fica definido se o vício seria sanável, ou não.
4 “A ressalva final constante da nova redação da alínea g do inciso I do art. 1º da Lei Complementar nº 64/90, introduzida pela Lei Complementar nº 135/2010 – de que se aplica ‘o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição’ –, não alcança os chefes do Poder Executivo.” (Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral no 10030. Rel. Min. Arnaldo Versiani. Publicado no DJE em 30/10/2012).
5 No mesmo sentido: (i) Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 5.620. Rel. Min. Nancy Andrighi. Publicado no DJE em 18/12/2012; (ii) Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral no 29533. Rel. Min. Laurita Vaz. Publicado no DJE em 13/3/2013; (iii) Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 46613. Rel. Min. Laurita Vaz. Publicado no DJE em 22/2/2013.
6 Lembrando, aqui, a expressão usada pelo Ministro Ayres Britto, durante o julgamento da aplicabilidade imediata, ou não, da Lei da “Ficha Limpa”.
7 Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2007. p. 246.