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A importância social da Recuperação de Empresas

6 de setembro de 2019

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A crise econômica que assola o Brasil desde 2014 fez com que houvesse um aumento significativo do número de processos de recuperação judicial de empresas. Segundo a Serasa, foram 1863 pedidos em 2016 – o ápice da crise econômica. O Brasil encerrou 2018 com 1408 pedidos de recuperação, número praticamente igual ao de 2017.

Além do grande número de pedidos ajuizados, chama atenção também a crescente complexidade das demandas, envolvendo conglomerados econômicos relevantes nos seus setores de atuação. Grandes empresas e grupos empresariais importantes ajuizaram pedidos de recuperação judicial recentemente, como é o caso da Avianca Brasil e do Grupo Odebrecht.

Em muitos casos, a imprensa noticia os termos do plano de recuperação apresentado pela devedora que, no mais das vezes, impõe severos prejuízos aos credores, agregando deságios de mais de 50% e alongamento para pagamento de dívidas que superam facilmente os 5 anos.

Diante desse cenário, é comum encontrar aqueles que questionam a razão de existir dessa ferramenta jurídica. Se a empresa é insolvente e não têm condições de pagar os seus credores, qual seria a razão de tentar salvá-las?  Por que razão impor aos credores um prejuízo a fim de manter o funcionamento da empresa devedora? Não seria melhor liquidá-la?

A resposta a essa pergunta passa, necessariamente, pela constatação de que, diante de um cenário de crise, pode ser melhor (ou menos pior) para os credores manter a empresa devedora em funcionamento. Deve-se fazer uma comparação entre o valor de liquidação da empresa e o valor gerado com o funcionamento da empresa (going concern). Se a liquidação dos ativos da empresa gerar menos valores do que a manutenção de seu funcionamento, é melhor para os credores – em geral – que a empresa
continue operando.

Imagine uma situação bastante simples: a empresa é um lago com 1000 peixes. É possível que sejam pescados 500 peixes por ano, deixando-se no lago os outros 500 peixes a fim de que procriem, viabilizando que no ano seguinte o lago tenha novamente os 1000 peixes. Assim, nesse ano seguinte será possível pescar novamente 500 peixes e assim por diante. Fazendo-se uma avaliação dessa empresa – bem simplista – e trazendo-se ao valor presente, chega-se à conclusão de que ela vale o equivalente a 2.500 peixes, pois é isso que a empresa produziria em 5 anos.

Caso essa empresa seja liquidada, com a pesca e a venda de todos os peixes do lago, o valor máximo a ser atingido será equivalente a 1000 peixes (exaurindo-se todos os peixes, sem possibilidade de haver pescaria nos anos seguintes).

Fazendo-se um simples cálculo, é melhor para o credor manter a empresa em funcionamento e receber 2.500 peixes, do que liquidar a empresa e receber apenas 1000 peixes.

Portanto, aqui temos uma primeira constatação: a liquidação da empresa pode representar um prejuízo maior para os credores do que a manutenção de suas atividades. Evidente, assim, que pode interessar ao mercado tentar ajudar a empresa.

Vale destacar que essa solução será melhor para os credores em geral e não necessariamente para os credores individualmente. A comunidade de credores terá 2500 peixes para dividir, ao invés de apenas 1000. É certo que alguns credores receberão mais peixes que outros, dependendo da negociação e dos privilégios legais. Mas, no geral, essa solução será melhor para o conjunto de credores.

Mas não é só.

Além do interesse do mercado, representado pela vontade do conjunto de credores da empresa em crise, a manutenção de suas atividades atende também a interesses muito maiores, de natureza pública e social.

O funcionamento da empresa gera empregos, tributos, produtos, serviços e circulação de riquezas.

Nesse sentido, o encerramento de suas atividades, através da liquidação de seus ativos, representaria o desaparecimento desses benefícios econômicos e sociais. A sociedade e a economia sofreriam fortemente os efeitos negativos do encerramento da empresa, aumentando o desemprego, diminuindo a renda da população, aumentando o nível de insatisfação social, diminuindo o nível de atividade econômica e a arrecadação de tributos, dentre outros efeitos deletérios.

Há casos em que o encerramento da empresa afeta o regular funcionamento de todo um setor da economia, prejudicando a atividade de dezenas de outras empresas que também não conseguirão prosseguir suas atividades em razão da dependência empresarial com aquela que fechou suas portas.

Assim, se a empresa tem condição de gerar valores com o seu funcionamento, será melhor para os credores e também para a sociedade como um todo que suas atividades sejam preservadas.

É essa a função social da recuperação judicial de empresas. A Lei no 11.101/05 estabelece que a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Entretanto, há aqueles que afirmam que não se justifica manter a empresa devedora em funcionamento por conta dos valores sociais. Segundo esses críticos, a liquidação da empresa poderá abrir espaço para que outro agente econômico ocupe o seu lugar, desenvolvendo atividade saudável, fazendo voltar os empregos, tributos, produtos, serviços etc. Então, porque impor aos credores o sacrifício para manter o funcionamento da empresa devedora?

É certo que numa economia com perfeito funcionamento, o agente econômico que desapareceu em razão da sua insolvência poderia ser mesmo substituído por outro, que passaria a exercer atividade geradora de empregos, tributos, produtos e serviços, suprindo a falta ou o desaparecimento daquele agente que foi ineficaz na sua atuação.

Ocorre que, mesmo em economias perfeitas, essa reposição levará um tempo para acontecer. Mas as pessoas e o Estado têm necessidades prementes que não podem aguardar a recomposição econômica daquela atividade. Até que os empregos surjam novamente, como as pessoas irão sobreviver? E a queda da arrecadação de tributos, até que outra atividade inicie suas atividades? Ademais, poderá haver a imposição de sacrifícios sociais relevantes, como a migração de famílias, com todos os prejuízos daí advindos.

No Brasil, essa situação se agrava. A crise econômica impede, na prática, que uma atividade liquidada seja substituída por outra, consolidando-se os prejuízos sociais e econômicos decorrentes do encerramento da empresa.

Por essa razão, tem-se que a função social da recuperação judicial tem grande relevo para o bom funcionamento da economia e para a estabilidade da sociedade brasileira.

É justamente por isso que os Tribunais brasileiros, notadamente o Superior Tribunal de Justiça, vêm afirmando – com razão – a função social da empresa como fator determinante para a preservação das atividades da devedora, ainda que isso se faça em detrimento de interesses individuais de alguns credores.

Interesses particulares e privados nunca poderão se tornar uma barreira intransponível à realização do interesse social buscado pela recuperação judicial como seu principal objetivo.