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A história do País ao alcance de todos

30 de maio de 2017

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Maria ElizabethEm entrevista, a ministra do Superior Tribunal Militar Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha fala sobre a importância do acervo documental mantido pela Corte e comenta a recente liberação de 10 mil horas de áudio de gravações de sessões secretas e não secretas, realizadas a partir de 1975.

Um arquivo de extrema relevância para pesquisas, que ajudará a lançar luzes sobre um período marcante da história do Brasil está, agora, disponível para consulta pública. Em 19 de abril, o Superior Tribunal Militar (STM) entregou cerca de 10 mil horas de áudios, de gravações de sessões secretas e não secretas ocorridas entre o período de 1975 a 2004, ao pesquisador e advogado Fernando Fernandes.

O material, assim como os processos históricos preservados nos arquivos do STM é base principal para a construção de tese de doutorado de Fernandes, e foi entregue pelo ministro José Coelho Ferreira, presidente da Corte. A decisão do STM não apenas atende à Lei de Acesso à Informação, como também cumpre decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que decidiu, em 16 de março, que o material deveria ser liberado.

Estes documentos e áudios passam a integrar um acervo com mais de 20 milhões de páginas de documentos, do período de 1808 a 1989, que já estava disponível para pesquisas desde 2015, quando da gestão da ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha na presidência do STM (junho de 2014-março de 2015). Nesta entrevista, a magistrada fala sobre a importância história deste acervo e destaca alguns registros de grande relevância que o compõem.

Revista Justiça & Cidadania – Como a senhora como a senhora comentaria a decisão do Supremo Tribunal Militar na Reclamação no 11.949-RJ, que determinou a entrega dos áudios das sessões secretas dos presos políticos processados e julgados pelo Superior Tribunal Militar durante o regime de exceção?

Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha – Já foi cumprida pelo atual presidente, o ministro José Coelho Ferreira, e é uma decisão previsível e inevitável! A uma porque ao conhecer e prover a Reclamação 11.949-RJ o STF fez cumprir decisão anteriormente prolatada por ele próprio – o Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 23.036-1-RJ – que determinava a publicidade e o direito à informação dos registros documentais e fonográficos relativos aos julgamentos ocorridos na década de 1970 no Superior Tribunal Militar; a duas, porque a Lei no 12.527, de 18 de novembro de 2011, é taxativa ao impor a transparência dos atos estatais.

A seu ver, a transparência na Justiça Militar da União aproximará a Corte da sociedade civil e contribuirá para a elucidação da sua atuação durante a ditadura?

Esta é uma pergunta extremamente importante porque me possibilita dissipar desinformações acerca da Justiça Militar da União, nomeadamente, sobre sua atuação ao longo dos regimes de exceção noticiados pela historiografia pátria. Ainda desconhecida, lamentavelmente, por grande parte da sociedade brasileira e dos próprios operadores do Direito, a despeito de ser a Justiça mais antiga do Brasil, instituída em 1808 por Dom João VI quando ainda era Príncipe Regente, e não em 1964 pelos militares, é comum atribuir à Corte Castrense a pecha de tribunal de exceção.

Nada é mais equivocado. Sua jurisprudência atesta a imparcialidade e isenção de julgamentos democráticos consolidados em decisões memoráveis, tal qual a prolatada pelo então Supremo Tribunal Militar, quando reformou sentença condenatória proferida contra João Mangabeira pelo Tribunal de Segurança Nacional do Estado Novo de Vargas, concedendo-lhe a ordem de habeas corpus –HC no 8.417, de 21 de junho de 1937 –, ou ainda, quando deferiu inédita medida liminar em sede deste mesmo writ sob a pena do brilhante jurista Arnoldo Wald, já em 1964, primeira Corte a fazê-lo, servindo tal decisão de precedente para o Supremo Tribunal Federal – no HCno 41.296, de 14 de novembro de 1964, cujo impetrante foi Sobral Pinto e o paciente o então Governador de Goiás, Mauro Borges, a quem se queria impor o impeachmentpor perseguição política.

Outros exemplos poderiam ser mencionados para ilustrar a trajetória dignificante da Justiça Militar Federal. Eu rememoro o caso da incomunica­bilidade dos presos, proibidos de manter contato com seus advogados sob a égide da Lei de Segu­rança Nacional e que teve na histórica decisão da Representação no 985, correta e precursora solução ao observar os princípios do direito de defesa. Do mesmo modo, decidiu o STM na década de 1970 que a greve, mesmo quando declarada ilegal pelo Poder Executivo, se perseguisse objetivos de melhoria salarial não se traduzia, segundo o R.C no 5385-6, em crime contra a segurança nacional. Ainda, no R.C no 38.628 assentou que a mera ofensa às autoridades constituídas, embora expressa em linguagem censurável, não configurava crime contra a segurança do Estado, resguardando dessa forma, a liberdade de imprensa e de expressão.

No tocante à Lei de Anistia, ampliou jurisprudencialmente o seu alcance para estender o perdão legal aos réus e presos políticos que tivessem sido condenados por terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.

Mas nada se compara ao acórdão prolatado em sede da Apelação no 41.264 de 19 de outubro de 1977, onde todos os Ministros do STM: Brigadeiros, Almirantes, Generais e civis, subscreveram por unanimidade um verdadeiro manifesto contra as torturas e sevícias praticadas pelo regime ditatorial, única Corte de Justiça a fazê-lo. Transcrevo excerto do voto:

Nós juízes desta Casa, deste templo de Justiça, todos nós, indistintamente, somos visceralmente contrários às torturas e sevícias aplicadas aos detidos, como um atentado à própria dignidade humana. […] Pouco importam os antecedentes e as suspeitas que possam recair sobre os acusados da prática de crimes, recolhidos à prisão. Na obtenção de suas confissões, não é lícito a nenhuma autoridade policial, sendo-lhe mesmo defeso, empregar métodos medievais e cruéis, sejam ou não procedentes as acusações que lhe são imputadas. Ficou comprovado no processo, sem ressaibo de dúvida, pela simples leitura das conclusões dos laudos apresentados pelo Instituto Médico-Legal do Estado do Rio de Janeiro, referentes às lesões corporais causadas ao apelado, que o mesmo sofreu torturas e sevícias que deixaram marcas indeléveis em seu corpo, não obstante o retardamento havido na realização dos exames periciais. Contra tais métodos, contra tais práticas, este Tribunal, pela unanimidade de seus Juízes, ao tomar esta decisão, quis externar o seu repúdio, a sua revolta e a sua condenação. É inadmissível a repetição de fatos como os lamentavelmente retratados nos autos, que constituem um eloquente atestado de afronta e desrespeito à dignidade da criatura humana.

As decisões referidas, dentre outras que poderiam ser elencadas, conferiram incensuráveis desates e exata dimensão jurídica sobre temas que constantemente se prestavam a interpretações dúbias. Sem dúvida, temos uma jurisprudência dignificante que, ao sobrepor-se às pressões políticas deixou significativo legado às gerações futuras e ao democratismo do
Poder Judiciário.

Por último, saliento que os defensores públicos da União quando atuaram pela primeira vez no Judiciário Pátrio, atuaram no Tribunal Militar Federal. E é por essa razão e não outra, que os grandes advogados que ocuparam a Tribuna do Superior Tribunal Militar e defenderam a liberdade e a restauração democrática no Brasil como Sobral Pinto, Heleno Cláudio Fragoso, Técio Lins e Silva, só para nomear três de um universo imenso, teceram a ele referências elogiosas. A respeito, eu convido o leitor a acessar a Revista Veja virtual, de 21 de dezembro de 1977, a qual estampa uma matéria de capa intitulada “A Justiça Militar e os Direitos Humanos – A lei respeitada”, e ler o seu conteúdo bem como os depoimentos ali contidos. E atente-se, a edição estampada é de 21 abril de 1977, ou seja, logo após a outorga do famigerado “Pacote de Abril”, outorgado pelo ex-presidente Ernesto Geisel, quando, dentre outras medidas, foi determinado o fechamento do Congresso Nacional.

Todos os processos do STM estão abertos à consulta pública ou alguns ainda se encontram sob sigilo?

Posso afirmar com toda a segurança que definitivamente não. E digo isso com convicção porque eu própria, quando presidi a Corte em meus nove meses de mandato, abri todo o acervo à pesquisa e busquei a transposição das sessões secretas dos réus denunciados sob a égide da Lei de Segurança Nacional, que estavam em fita de rolo para mídia digital, referentes aos anos de 1975 a 1985, perfazendo um total de 1.049 horas. A minha preocupação foi precisamente salvar a História do Brasil e a do Superior Tribunal Militar e não permitir que ela se deteriorasse.

Este trabalho resultou na Exposição, hoje permanente, Vozes da Defesa, em parceria com a OAB/Federal, um ambiente que reproduz o plenário da primeira sede do STM no Rio de Janeiro entre 1808 a 1972 e disponibiliza, em áudios, sustentações orais de Heráclito Sobral Pinto, Arnaldo Malheiros Filho, Augusto Süssekind de Moraes Rego, Elizabeth Dinis Martins Souto, José Luis Clerot, Heleno Cláudio Fragoso, Lino Machado Filho, Nélio Roberto Seidl Machado, Luiz Eduardo Greenhalg e Técio Lins e Silva. Isso, sem mencionar as gravações, disponíveis a qualquer cidadão, de outros advogados e sustentações.

Ademais, temos também o espaço STM no Tempo,no qual vários originais estão acessíveis ao público.

Paralelamente, o Tribunal disponibilizou em seu sítio oficial o espaço JMU na História, com representantes digitais de processos judiciais arquivados desde a Primeira Guerra Mundial até as Revoltas de Jacareacanga e Aragarças.

Em 2015, iniciamos o Repositório Institucional da JMU, uma base de dados onde estarão disponíveis, em inteiro teor, publicações doutrinárias, documentos em vídeo, áudio, fotos, livro de acórdãos, base de atas, de legislação, de informações da diretoria de pessoal, de documentos da secretaria de controle interno e acervo do museu, que ficará pronto em julho de 2017.

Estamos, igualmente, em tratativas para criar um Centro de Memória da Justiça Militar da União, cuja intenção é fazer com que todos os documentos históricos produzidos pela JMU sejam preservados, tratados e oferecidos em um único lugar.

Outrossim, buscamos a padronização terminológica e o projeto de discrição arquivística do nosso acervo e, para tanto, firmamos um termo de cooperação com a Universidade de Brasília a fim de que os dados coletados sejam ofertados àqueles que o acessarem a partir do software AtoM.

E por último, digitalizamos no ano passado 890 mil documentos. Contudo, temos ainda 21 milhões de folhas de processos históricos a digitalizar, o que demanda imensos custos nestes tempos de crise e contingenciamento orçamentário. Concluídos os trabalhos, ficarão encapsulados no software de preservação Archidemática.

O STM está, pois, se empenhando em custodiar seu acervo histórico documental, uma verdadeira preciosidade, para oferecê-lo aos brasileiros, à comunidade acadêmica e aos interessados. Afinal, todos nós o merecemos!

A senhora, durante a sua presidência, determinou que se digitalizassem os processos da Justiça Militar da União e que fossem transpostas para mídia digital as sessões secretas dos réus processados pela Lei de Segurança Nacional. O que a motivou?

Como professora e pesquisadora que sou sempre reconheci, tal qual os demais Ministros do passado e do presente, a importância da preservação da memória histórica. Não se constrói o futuro sem o conhecimento do passado. O que fiz, portanto, foi dar prosseguimento a um trabalho iniciado pelos meus antecessores e, posteriormente, ao sair da Presidência, presidi a Comissão de Digitalização devido o meu envolvimento com o assunto e o meu respeito por um acervo tão relevante que se confunde com a própria história do Brasil.