Edição 290
A concessão judicial de medicamentos não incorporados ao SUS: uma breve análise
4 de outubro de 2024
Juan Biazevic Juiz de Direito no Tribunal de Justiça de São Paulo

O Supremo Tribunal Federal, no início de setembro de 2024, publicou as teses firmadas em dois temas relacionados ao direito da saúde, os quais possuem o potencial de serem divisores de águas na maneira pela qual o Poder Judiciário lida com a adjudicação em matéria de saúde pública. Os Temas de no 6 e no 1.234 tratam, respectivamente, dos requisitos para a concessão judicial de medicamentos e da repartição de competências jurisdicionais para o fornecimento de medicamentos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Nas linhas que seguem, concentrar-me-ei na análise do primeiro tema.
Todos os que analisam a questão da judicialização da saúde destacam o crescimento, ano após ano, do número de processos em andamento. Boa parte dessas demandas envolve pretensões à entrega de medicamentos, alguns padronizados em programas de dispensação pública e outros que não estão previstos em nenhum tipo de programa. Neste último caso, é muito comum encontrar demandas nas quais o Estado é condenado a fornecer determinado medicamento, independentemente de sua previsão em programa público, fundamentando-se a necessidade de aquisição exclusivamente na prescrição do médico que assiste o paciente.
Essa realidade incentiva comportamentos oportunistas por diversos agentes econômicos que atuam no mercado da saúde. Embora, para os operadores do direito, a saúde seja um direito social constitucionalmente protegido, para os que atuam no segmento, a saúde é um mercado e, como tal, está composto por agentes que competem pela captação dos recursos financeiros nele disponíveis. Os exemplos são muitos e variados, incluindo, mas não se limitando, a laboratórios interessados na venda de medicamentos de altíssimo custo e a diversos profissionais da saúde que se beneficiam financeiramente pelas prescrições realizadas a seus pacientes.
Esse conjunto de incentivos contribui para o excesso de judicialização na área da saúde, o que pode ser controlado a partir da criação de critérios mais racionais para a adjudicação nesse campo. São exatamente esses critérios que o Supremo Tribunal Federal, em claro amadurecimento de sua jurisprudência sobre o tema, delineou ao definir as teses do Tema no 6.
O fio condutor para a compreensão da decisão é a ideia de proteção da racionalidade regulatória na área da saúde. Para o STF, o Judiciário deve evitar ao máximo interferir na forma como o gestor da saúde planejou a execução dos serviços, pois os juízes não são tecnicamente as pessoas mais habilitadas para alocar de maneira eficiente, obtendo os melhores resultados em saúde pública, os limitados recursos disponíveis para a atenção farmacológica.
A regra – Como regra geral, o STF definiu que não se deve conceder judicialmente medicamentos, independentemente do custo, que não estejam previstos em programas de dispensação. Caso o medicamento não conste, por exemplo, nas listas da RENAME (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais) ou em suas equivalentes nos âmbitos estadual e municipal, o jurisdicionado não poderá demandar sua entrega.
A regra é essencial para a manutenção da racionalidade regulatória. Seu estabelecimento preserva a integridade das políticas públicas de saúde, evitando que decisões judiciais comprometam a organização, a eficiência e a sustentabilidade econômica do Sistema Único de Saúde. Além disso, essa norma também assegura a igualdade no acesso às políticas de saúde, pois a alocação de recursos originalmente destinados à coletividade, para atender demandas individuais, obriga o gestor a realocar parte do orçamento previamente planejado. Essa realocação de recursos terá como consequência inevitável a impossibilidade de atender a algumas das necessidades originalmente programadas. Dito de forma mais direta, o gestor será obrigado a realizar cortes no orçamento para cumprir a determinação judicial e algumas pessoas, especialmente as mais distantes econômica e politicamente dos centros de poder, deixarão de receber seus medicamentos.
A exceção – A criação de listas é uma estratégia eficiente para a gestão da saúde, mas possui problema inafastável: não há garantia de que sempre haverá medicamento disponível para tratar todas as condições de saúde. O STF, ciente dessa limitação, buscou disciplinar, de forma bastante rigorosa, as exceções à regra, estabelecendo delicado equilíbrio entre a proteção da racionalidade regulatória e a proteção da vida das pessoas. Assim, desde que cumpridos todos os requisitos exigidos pelo Tribunal, o jurisdicionado pode postular, com sucesso, a entrega de medicamento que não esteja previsto em programa de dispensação. Vejamos cada um deles.
Inicialmente, o medicamento deve possuir registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Aqui, o Tribunal reafirmou a integral vigência do que foi decidido anteriormente, quando da fixação das teses do Tema no 500: “A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial”. Esse mesmo tema apresenta exceções, articuladas a partir da possibilidade lógica de demora na apreciação do pedido de registro pela autarquia. Nesse caso, o enfermo poderá pleitear judicialmente a entrega do medicamento, desde que (a) ele possua registro em agência de regulação renomada no exterior e (b) não exista substituto terapêutico registrado no Brasil.
A parte também deverá demonstrar a negativa de fornecimento do medicamento. Isso significa que ela deverá, inicialmente, requerer administrativamente a entrega e, apenas na hipótese de recusa, poderá buscar a via judicial. A forma de comprovação dessa negativa está disciplinada pelo Tema no 1.234 (item 4), que prevê a criação de cadastro nacional de controle de solicitações de medicamentos.
Dentro do espírito de deferência ao regulador, o STF impõe a necessidade de o magistrado considerar a participação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC) na incorporação do medicamento. Existem três possibilidades nesse contexto: (1) Se a CONITEC já analisou o pedido de incorporação e emitiu parecer contrário, a atuação do magistrado estará limitada à verificação da legalidade do procedimento decisório, sendo-lhe vedado ingressar no mérito administrativo para decidir de forma contrária. (2) Se houver pedido de incorporação pendente de apreciação, o juiz deve verificar se os prazos legais para a realização do procedimento estão sendo cumpridos. Em caso de mora da CONITEC, o magistrado poderá apreciar o pedido. (3) Se o medicamento não tiver sido submetido à análise pela CONITEC, assim como no caso anterior, o magistrado poderá apreciar o pedido, verificando a presença dos demais requisitos estabelecidos pelo STF.
Presentes as condições anteriores (registro sanitário, negativa administrativa de fornecimento e demora ou ausência de análise pela CONITEC), o magistrado deverá verificar se existe alternativa terapêutica já incorporada ao SUS para o medicamento solicitado. A justificativa é clara: se o SUS já disponibiliza outro medicamento para a mesma patologia, o jurisdicionado, sem que isso represente risco a sua saúde, deve utilizá-lo. Caso a parte entenda que a alternativa terapêutica existente é ineficaz ou que não há substituto terapêutico adequado para o tratamento de sua patologia, ela assumirá o ônus processual de comprovar, com base em critérios da medicina baseada em evidências, a “eficácia, precisão, efetividade e segurança do fármaco solicitado”. Essa comprovação deverá ser realizada exclusivamente por meio de evidências científicas de alto nível, tais como “ensaios clínicos randomizados e revisões sistemáticas ou meta-análises”. Na chamada pirâmide das evidências científicas, esses estudos são considerados, devido a sua metodologia, os mais aptos a fornecer evidências clínicas confiáveis. Além disso, a parte deverá demonstrar que o medicamento não incorporado é imprescindível para o tratamento, juntando aos autos laudo médico fundamentado que descreva, também, os tratamentos já realizados anteriormente.
As questões anteriormente mencionadas — existência de equivalente terapêutico, comprovação dos predicados à luz da medicina baseada em evidências e imprescindibilidade clínica do tratamento — são de natureza técnica e não pertencem ao domínio do direito. Por essa razão, o STF estabeleceu dever processual para o magistrado. Ele deve consultar o Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NATJUS), ou, na ausência deste, recorrer a entes ou especialistas com expertise técnica na área, antes de tomar qualquer decisão sobre a dispensação do medicamento. Todos os aspectos técnicos mencionados serão analisados pelo NATJUS, orientando o juiz na tomada de decisão. Além disso, o Tribunal foi enfático ao proibir fundamentar decisão favorável à concessão exclusivamente no “laudo, relatório ou prescrição médica juntada aos autos pelo autor da ação”. A desconsideração dessa consulta técnica é classificada pelo STF como causa de nulidade do processo, por descumprimento do precedente vinculante. Essa sistemática importa o reconhecimento de que, embora os médicos sejam especialistas em suas áreas de atuação, nem sempre estão capacitados para realizar análises baseadas em evidências científicas, uma vez que essa disciplina é complexa e exige o domínio de assuntos relacionados à metodologia de pesquisa científica, estatística e à interpretação de grandes volumes de dados. Tais habilidades não faziam parte dos currículos acadêmicos tradicionais e, mesmo atualmente, estão presentes em poucos programas universitários.
O último requisito a ser preenchido é a comprovação da incapacidade financeira do paciente para custear o medicamento. Esse pressuposto visa evitar o patrimonialismo, aqui caracterizado pelo uso desigual dos recursos públicos disponíveis por pessoas com maior capacidade econômica e em detrimento dos mais vulneráveis.
O futuro da judicialização da saúde – A partir da decisão tomada pelo STF, é possível identificar alguns caminhos para a judicialização da saúde. O efeito desejado pela decisão é duplo: a redução da judicialização e o aumento da deferência à decisão administrativa tomada pelo gestor da saúde. De maneira geral, o tema busca evitar que o juiz substitua o gestor na tomada de decisões relativas à alocação de recursos na saúde. O próprio precedente estabelece que, ao conceder o medicamento, o magistrado tem o dever de oficiar ao SUS para que este analise a possibilidade de incorporação do fármaco aos programas de atenção farmacológica, atuando positivamente para a atualização do sistema.
O tema também impõe alguns desafios. A implementação da decisão exigirá o fortalecimento da estrutura dos Núcleos de Apoio Técnico (NATJUS) nas esferas federal e estadual, a fim de evitar que o excesso de consultas cause lentidão nas respostas, especialmente em uma área tão sensível ao fator tempo como a saúde.
Ele contribuirá, também, para necessária modificação na cultura dos magistrados brasileiros, que, conforme demonstrado por pesquisas realizadas pelo CNJ/INSPER (2019) e pela FGV (2023), costumam decidir esse tipo de demanda sem buscar critérios técnicos mais aprofundados, baseando-se apenas em considerações principiológicas e nos documentos emitidos pelo médico assistente do paciente.
Ele também criará incentivo para os tribunais pela especialização, com a criação de varas especializadas em direito da saúde, tal como sugerido pela Resolução no 238/2016 do Conselho Nacional de Justiça (art. 3o). Afinal, o tipo de análise complexa que os magistrados deverão realizar nem sempre é compatível com a cumulação de competências jurisdicionais.
Finalmente, agora pensando na saúde suplementar, os critérios utilizados pelo STF para a racionalização da judicialização na saúde pública também podem ser aplicados ao segmento. Os desafios para a sustentabilidade dos sistemas de saúde são comuns a ambas as áreas, não havendo motivos para afirmar que a lista de procedimentos obrigatórios da ANS merece menor deferência técnica do que a do SUS. Da mesma forma, a possibilidade de abertura de exceções deve seguir os rigorosos critérios da medicina baseada em evidências, pois ambas as áreas têm a missão de cuidar da melhor forma da saúde das pessoas com os recursos que são arrecadados. O que diferencia as áreas é a diversidade das fontes de custeio, não os compromissos assumidos.
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