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IDPJ: técnica processual adequada para extensão de responsabilização patrimonial a terceiros

12 de março de 2024

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Uma das grandes novidades do Código de Processo Civil de 2015 foi a previsão, no seu Título III, de uma nova hipótese de intervenção de terceiros: o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) disciplinado nos artigos 133 a 137. Trata-se de um procedimento adequado para responsabilização de terceiros que, por essa qualidade, não respondem originariamente pela obrigação discutida em determinado processo em razão da desconsideração da personalidade jurídica. 

A par da larga aceitação e utilização do IDPJ pelos operadores do Direito, a prática forense demonstra que o instituto tem sido desvirtuado de sua real finalidade. E são dois os principais equívocos observados: (i) ou o IDPJ não é aplicado quando claramente deveria ser, tendo sua aplicação mitigada; (ii) ou o IDPJ é utilizado para tutelar situações jurídicas para as quais o ordenamento já previu outro procedimento aplicável.

A previsão do IDPJ como modalidade de intervenção de terceiros representou nítida evolução em relação ao CPC de 1973. O art. 592 do CPC 73 (atual art. 790, II) já previa a responsabilidade secundária dos sócios “nos termos da lei”. Acontece que, à míngua de um procedimento específico, eram comuns os casos em que o terceiro (sócio ou pessoa jurídica), sem ser previamente citado, teve seu patrimônio atingido em processos dos quais não era parte. Ao terceiro cabia, então, defender-se a posteriori, com patrimônio constrito, em clara vulneração do contraditório substancial.

O CPC 2015 superou esse entrave ao disciplinar o IDPJ, cuja finalidade é assegurar o contraditório amplo e integral do terceiro antes de eventual reconhecimento de responsabilidade e antes que seja efetivamente inserido como parte em processo alheio. 

Não é sem razão que o IDPJ não pode ser instaurado de ofício, aplica-se em qualquer fase do processo, suspendendo-o quando requerido incidentalmente, garante ampla dilação probatória etc. Trata-se de técnica processual, na melhor acepção do termo, a ser utilizada com o objetivo de garantir o contraditório antes de reconhecer a responsabilidade de terceiro e integrá-lo a processos dos quais não é parte. 

É preciso dizer que o IDPJ não cria regras de responsabilização. Assim, não estabelece critérios para desconsideração da personalidade jurídica. Os critérios, pressupostos e requisitos para responsabilização dos terceiros estão previstos nas diversas regras de direito material do ordenamento jurídico.  É o caso, por exemplo, das hipóteses de responsabilização previstas no art. 50 do Código Civil e art. 28 do CDC (abuso da personalidade jurídica); art. 1.146 do Código Civil (trespasse de estabelecimento); arts. 133 e 135 do CTN (aquisição de fundo de comércio e excesso de poderes de sócio-diretor, respectivamente); art. 4o da Lei no 9.605/1998 (ressarcimento por danos ao meio ambiente); art. 14 da Lei no 12.846/2013 (responsabilização de pessoas jurídicas por ato ilícito contra a Administração Pública) etc. Todos esses dispositivos são regras de direito material, contendo critérios de responsabilização de terceiros por obrigações alheias. 

Contudo, a necessidade de resguardar ao terceiro o devido processo legal, mediante contraditório prévio e amplo, antes de ser incluído como parte em processo pendente, não está presente exclusivamente nas hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, mas igualmente quando se trata de outros fenômenos de extensão de responsabilidade patrimonial. 

Assim é que se abre o caminho para a utilização do IDPJ como procedimento adequado para discutir o preenchimento dos pressupostos específicos de outras modalidades de corresponsabilização previstas no direito material. Ou seja, se a pretensão de responsabilização do terceiro se funda, por exemplo, na alegação de trespasse de estabelecimento comercial, deve-se instaurar o IDPJ para que, garantindo-se o pleno contraditório, sejam ali investigados os requisitos específicos do art. 1.146 do Código Civil.

Disso resulta que não se deve incorrer no equívoco de limitar a utilização do IDPJ aos casos em que se visa a responsabilização do terceiro com fundamento no art. 50 do Código Civil. É que, havendo diversas hipóteses de responsabilização secundária do terceiro à míngua de procedimento específico, qualquer limitação do uso do incidente a uma hipótese específica implicaria tratamento anti-isonômico ao jurisdicionado e inafastável privação do devido processo legal.

Também não se deve concluir que a utilização do IDPJ atrai, por si só, a incidência do art. 50 do Código Civil, sobretudo quando seus requisitos não são discutidos no caso concreto. É preciso insistir que o IDPJ, tal como previsto no CPC 2015, não cria pressupostos de responsabilização. O IDPJ deve ser entendido como técnica geral de corresponsabilização aplicável a todas as situações de responsabilização secundária do terceiro previstas no direito material e que não são objeto de demanda própria. 

Por fim, um último alerta precisa ser feito. Embora o IDPJ seja uma técnica processual geral de corresponsabilização, ela não será utilizada nos casos em que o próprio ordenamento preveja procedimento específico. É o que acontece, por exemplo, nas hipóteses de fraude contra credores (arts. 158 e 159 do Código Civil) e fraude à execução (art. 792 do CPC). Esses institutos são causas de ineficácia do negócio jurídico e visam, em última análise, alcançar o patrimônio do terceiro por dívida alheia. Para esses casos, porém, o sistema já prevê procedimentos específicos para o reconhecimento da responsabilidade do terceiro. 

No caso da fraude contra credores, o instrumento processual adequado para se impugnar o negócio jurídico supostamente fraudulento é a ação pauliana, a ser promovida no prazo decadencial de 4 anos contados da realização do negócio jurídico (art. 178, II, Código Civil). Tratando-se de ato praticado por sociedade falida, a alegação de fraude deverá ser deduzida em ação revocatória, a ser ajuizada no prazo decadencial de 3 anos contados da decretação da falência (art. 132 da Lei no 11.101/2005). 

Sendo a hipótese de fraude à execução, o reconhecimento da responsabilidade se dá incidentalmente, na pendência do processo. Contudo, antes de se declarar a fraude, de forma coerente, o art. 792, § 4o, do CPC garante ao terceiro o devido processo legal, permitindo-lhe opor embargos de terceiro, observado o contraditório prévio.

Significa dizer que, nos casos de fraude contra credores e fraude à execução, o IDPJ não é aplicável e nem deve ser utilizado, sob pena de configurar uma burla aos remédios jurídicos específicos previstos na legislação. 

De todo modo, e para o que interessa a este ensaio, a conclusão inafastável é que, para as hipóteses de responsabilização secundária de terceiros previstas no ordenamento, deve-se garantir procedimento adequado, mediante contraditório prévio e integral. Não havendo técnica processual específica para esse fim, o IDPJ é o instrumento adequado para que se investigue a presença dos elementos subjetivos de extensão de responsabilidade patrimonial, assegurados o contraditório e a ampla defesa.